Leia o um trecho do conto Ideias do Canário, de Machado de Assis.
[...] Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. [...]
Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume.
— Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente [...] o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?
E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:
— Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. [...]
— Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.
— Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo.
ASSIS, Machado de. Ideias do canário.
Disponível em: <www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000224.pdf>.
Glossário:
Desolação: devastação.
Execrável: abominável, odioso.
Quiniela: jogo.
Trilou: gorjeou, cantou.
A personificação presente no conto de Machado de Assis:
a) critica a ausência de verossimilhança em narrativas ficcionais.
b) evidencia o jogo de figuras de linguagem implícito no texto.
c) ironiza a composição de textos narrativos infantis e juvenis.
d) proporciona a construção de personagens e diálogos inusitados.
GABARITO COMENTADO
Prática de Linguagem: Análise linguística/semiótica
Objeto (s) de conhecimento: Figuras de linguagem
Habilidade: (EF89LP37) Analisar os efeitos de sentido do uso de figuras de linguagem como ironia, eufemismo, antítese, aliteração, assonância, dentre outras.
a) O uso da personificação no texto reforça a sensação de liberdade do autor em relação à verossimilhança, uma vez que ele emprega a figura de linguagem como ferramenta para a criação das características de personagens.
b) A personificação presente no texto não é implícita, mas explícita, visto que o canário conversa e raciocina, ou seja, tem características humanas.
c) As narrativas infantis e juvenis são compostas, muitas vezes, de uma linguagem desenvolvida com base em figuras de linguagem, uma vez que essa estratégia torna o texto mais lúdico e palpável a crianças. No conto de Machado de Assis, entretanto, a intenção não é ironizar esse tipo de recurso, mas fazer uso dele. Além disso, o conto em questão nem pode ser considerado infantil, apesar do uso da personificação.
d) A criação de uma narrativa em que há um diálogo entre um canário e um homem é considerada inusitada por compor um texto de maneira diferente da noção de verossimilhança. Essa criação só foi possível por meio da personificação do canário que raciocina e argumenta sobre o que pensa. (correta)
Orientações sobre como interpretar as respostas e reorientar o planejamento com base nos resultados:
Retome com os alunos o conceito e as funções mais comuns da personificação, partindo de exemplos selecionados por eles mesmos em diferentes contos e minicontos, a partir dos quais é recomendado que eles possam identificar os efeitos de sentido produzidos por essa figura de linguagem em narrativas. Aproveite os suportes para explorar também a sinestesia, e os efeitos de sentido provocados por ela.
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